Uma estranha síndrome
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"Mania é coisa que a gente tem, mas não sabe por quê." (Dolores Duran)
O médico atendeu o garoto com meia hora de atraso. A mãe aguardava impaciente sentada nos bancos de madeira, tentando conter o menino. Ora, ninguém vai ao médico como quem vai ao restaurante ou ao cinema, quem procura atendimento, sempre tem pressa, embora a Língua Portuguesa o defina como "paciente".
— Boa tarde, doutor! – cumprimentou a mulher, esbaforida, arrastando um garotinho de uns seis anos, vestido de camisa de malha laranja, bermuda sintética azul e sandália de dedo.
— Boa tarde, minha querida! Sente-se. Em que posso ajudar vocês dois? – perguntou o médico, com ar solícito, a fim de disfarçar o atraso do atendimento.
— É o menino… ele tem um probleminha… – explicou ela, sentando-se e falando nervosamente. O menino deu um discreto sorriso para o médico e distraiu-se com um carrinho metálico que segurava nas mãos.
— E qual seria esse problema? – perguntou o profissional, franzido o cenho e ajustando os óculos, intrigado.
— Ele vive tomando choque. – esclareceu a mãe, enquanto o garoto movia o carrinho de brinquedo pelo chão do consultório, imitando o som de um automóvel com a vibração dos lábios.
— Tomando choque? Que tipo de choque? – continuou o médico, anotando alguma coisa em uma ficha sobre a mesa. Deslizou a ponta do polegar na base do anelar esquerdo, sentindo-o subitamente nu.
— Elétrico, choque elétrico. Começou há alguns meses. Ele parece… gostar. Está viciado em choque elétrico. Não sabemos mais o que fazer. – explicou a mulher, baixando o olhar, encabulada e pesarosa.
— Entendo. Err... vou precisar fazer alguns testes e… – disse ele, quando foi subitamente interrompido pela mãe.
— Meu filho! Tira o dedo dessa tomada! – gritou a mulher, ao perceber o garoto tremendo num canto da sala, com o dedo esticado e um sorriso no rosto, levantando-se em desespero e afastando o moleque do choque.
— Então, garoto… vem conversar um pouco com o tio aqui… – disse o médico, após levantar-se, aproximando do menino.
— Oi! – cumprimentou ele, quando o doutor agachou-se ao seu lado.
— Diz para o tio: pra que time você torce?
— Vasco!
— E qual a sua fruta preferida?
— Limão!
— Legume?
— Jiló!
— Se eu te dissesse que vai precisar levar umas injeções, o que você me diria?
— Demorô!
O médico então, ergueu-se e voltou para sua cadeira, batendo levemente a mão espalmada sobre a cabeça do menino, parecendo satisfeito com o diagnóstico.
— Minha senhora, não resta dúvida: seu filho padece, digamos... de uma síndrome. – explicou ele, franzindo os lábios após dar a notícia à preocupada mãe.
— Como é que é? Síndrome? – perguntou ela, intrigada.
— Sim, sim. – respondeu ele, observando uma expressão de ausência. Meneou a mão negativamente, como para afastar a última informação e prosseguiu, segurando uma caneta nas extremidades com ambas as mãos. – Enfim, tenho trabalhado nisso durante anos… trata-se de uma patologia muito comum em nossos tempos, mas ainda pouco estudada pela medicina. Err... a sensação de dor é processada por diversas áreas do cérebro, não havendo uma única região responsável. A sensação de prazer, por sua vez, está associada ao sistema límbico. De alguma maneira, o relacionamento entre essas regiões se torna confuso, e o indivíduo passa a sentir prazer em sentir dor. Trocando em miúdos, seu filho gosta de sofrer.
— Meu Deus! E isso é grave? Tem… cura? – perguntou ela, apertando sua bolsa contra o corpo, os olhos arregalados de pavor. O menino fez a volta na mesa do médico e, encontrando uma gaveta semiaberta, colocou os dedos na fresta e os prendeu.
— Eu não diria, necessariamente… grave. – explicou ele, dando ênfase à palavra grave. Ato contínuo, retirou a mão do garoto da gaveta, despachando-o com um tapinha nas costas. – É mais comum do que parece. Mas inspira cuidados, é claro, principalmente para garantir a segurança do garoto. A expectativa é que os sintomas desapareçam logo após a primeira infância, mas em alguns casos, pode se tornar um problema crônico e acompanhar o sujeito até a vida adulta. E isso sim, é gravíssimo, pois os indivíduos que sofrem dessa síndrome podem se tornar, inclusive, péssimos eleitores…
— Sério? Tem certeza que não é algum tipo de virose, não?
— Não, não. Não acredito nessa possibilidade… – respondeu o médico, com um discreto sorriso.
— E tem tratamento, doutor? – perguntou ela, com o olhar desconfiado.
— Sessões de terapia podem ajudar, além de analgésicos, eventualmente. – respondeu ele, pulando da cadeira ao ver o garoto tremendo com o dedo preso em outra tomada. Pegou-o, soluçando de rir, e o colocou sobre o colo da mãe. – Segure-o, por favor! – concluiu e espirrou, escondendo o rosto na dobra do braço, antes de voltar para a mesa.
— Só isso? O senhor não vai me dar nenhuma amostra grátis ou algo do tipo? Não vai fazer nenhum exame mais elaborado? – perguntou ela, tornando-se repentinamente hostil.
— Infelizmente é o que temos, minha senhora. Meus estudos indicam que o oferecimento de doses inofensivas pode satisfazer o paciente e consequentemente, afastá-lo de perigos maiores. Dê a ele sapatos apertados, alimentos amargos… enfim, use a imaginação. O importante é garantir a segurança de seu filho e torcer que isso tudo passe sem sequelas. – explicou ele, tentando manter a dicção inteligível antes de espirrar outra vez.
— Sem sequelas? Eu e meu marido já estamos sequelados! Usar a imaginação? Isso é o melhor que o senhor pode me oferecer? – disse ela, dando um tapa na mesa. O garoto se assustou, mas deu uma gargalhada.
— Minha senhora, eu peço que se acalme…
— Não me peça que eu me acalme! O senhor atende a gente com esse atraso todo e me diz esse monte de besteiras? Você é maluco ou o quê? Eu devia ter pago uma consulta particular, isso sim, porque olha… o serviço público vai de mal a pior. Ele vai ser um péssimo eleitor? Porra, então, isso não é uma síndrome, é uma epidemia!
— Senhora…
— Ora, vai tomar no… – esbravejou ela, batendo a porta na saída, saindo feito um furacão do consultório, arrastando o menino atrás de si.
Inspirou o ar fortemente e passou a mão na careca lisa. O problema é que, definitivamente, a maioria das pessoas não gosta de ouvir a verdade. Daí procura tratamentos alternativos, enfim, utiliza de toda forma de crendices para curar seus achaques; a medicina é frequentemente negligenciada. E toda negligência tem um preço.
Ele estava certo, sabia disso. Sabia? Por instantes, sentiu uma ponta de dúvida. Pensando melhor, quem sabe a mulher não tenha razão? Talvez todos nós gostemos de sofrer, haja vista tantas crises conjugais, econômicas e políticas, todos os aborrecimentos que nós mesmos criamos, dia após dia. Suspirou. Observou o carrinho abandonado pelo garoto propositalmente sobre a mesa, uma desculpa para sofrer pelo "sumiço" do brinquedo predileto. Em seguida, deu-lhe um piparote, fazendo-o descrever um pequeno percurso até um pote com abaixadores de língua. A mulher tem razão, de fato. O problema é que a maioria das pessoas não gosta de ouvir a verdade. E toda negligência tem um preço.
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