O peso do copo
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"Nossa mente nunca está bem a não ser quando está em paz consigo mesma." (Sêneca)
Foi então que Seu Brizola retornou ao interior do bar. Apoiou o copo americano no balcão e sinalizou para o Doutor, legítimo e único herdeiro do trono do saudoso Balboa, servir mais. Ficou parado e silencioso, esperando, como se captasse algo no ar, indecifrável para a maioria dos mortais. Aqueles homens se absorviam em seus próprios problemas e a verdade é que, naquele instante, o boteco parecia a nova Babel: em uma mesa reclamava-se de política; em outra, falava-se de família; em outra ainda, o assunto era o preço dos alimentos, o desemprego, as dívidas. Eventualmente um ou outro se intrometia na conversa do colega, mas tudo bem. Parecia que não, porém, todos se entendiam.
E eu ali, distraído com minha geladíssima Coca-Cola KS e a coxinha de frango. Putzgrila, terráqueo, eu conheço esse aí. Brizola… Claro! Brizola! Aquele senhor era o mesmo Brizola de quando eu era garoto, o mesmo que discursava na porta da bodega em frente à minha casa. Um tanto mais velho, é claro, mas todos nós envelhecemos. A maioria apenas não percebeu ainda. Ainda.
Sustei um arroto seguido de soluço e já ia cumprimentar o nobre personagem, quando ele se voltou para o interior do bar erguendo o copo com um dedo de cachaça no fundo.
— Senhores! Senhores! — repetiu ele, pedindo atenção. — Quanto este copo pesa? — concluiu, e todos repentinamente interromperam as conversas para entender do que se tratava a pergunta.
— Quanto pesa o copo? — perguntou o Doutor, intrigado, como a ratificar a questão.
— Sim, o copo. Quan-tope-saes-teco-po? — repetiu ele, com sua característica e enfática dicção lenta.
— Cheio ou vazio? — indagou o Angu Duro, encarando-o com seu olhar frio e melancólico.
— Na verdade, não importa muito, meus senhores. Mas admitamos que esteja cheio até a borda. Quanto ele pesa?
— Aí, depende. — comentou Sabirico, um dos mais gaiatos. — Se for com água é leve; se for com cerveja é muito mais leve. Agora, se for com cachaça, é levinho, levinho! — disse ele, provocando uma gargalhada geral.
— Duzentos mililitros? — arrisquei, embora julgasse a resposta óbvia demais para ser a correta naquele contexto. Brizola abanou a cabeça negativamente.
— Todos vocês acertaram — e er-ra-ram ao mesmo tempo. O volume do copo, o tipo de conteúdo, ou seja, seu peso ab-so-lu-to, não importa. — explicou Brizola, antes de virar a talagada de cachaça. Limpou os lábios com as costas da mão e depositou o copo sobre o balcão.
— Como não importa? Peso é peso e pronto! Isso não é relativo. — questionou o Doutor, indignado com a resposta. É claro, sem um pouco de indignação e inconformismo, nenhuma pessoa pode seguir outra por estes corredores.
— Ah, é sim — e vocês hão de concordar comigo. Na verdade o que importa é o tempo. Se eu segurar esse copo por trinta segundos antes de beber, ele terá um peso para mim. Se eu o segurar por um minuto, o peso será outro, assim como se eu o mantiver por uma hora. Se eu o segurar o dia inteiro, o peso será in-su-por-tá-vel, senhores. In-su-por-tá-vel! — concluiu ele e bateu com o indicador no balcão para que o jovem taberneiro servisse mais cachaça. Estava bêbado, não havia dúvida. Mas sua fala embargada e caracteristicamente cadenciada tinha certa coerência.
Subitamente o bar ficou silencioso. As palavras do Brizola ecoavam agora em algum canto escondido de todos nós e apenas o burburinho das pessoas na calçada e dos carros na rua em frente eram capazes de disfarçar aquele silêncio incômodo. Doutor colocou mais pinga no copo americano e nosso filósofo particular o pegou, dirigindo-se para a porta outra vez. A meio caminho, porém, voltou-se novamente em nossa direção. Naquele primitivo tumulto de vozes, nas mazelas e misérias tristemente confidenciadas, Brizola notou algo que mais ninguém percebeu.
— Esqueçam o copo, senhores. Problemas todo mundo tem. Eu tenho problemas, vocês também. Azia, chifres, dívidas, doenças, solidão… To-domun-do tem. A diferença está em quanto tempo escolhemos nos apegar a eles, pois isso também implica em quanto tempo podemos suportá-los. Além disso, se a carga nos parece pesada demais, não podemos nos esquecer ja-mais que nun-caes-ta-mos sós. — concluiu ele, com os olhos marejados. Baixou a cabeça, e franziu os lábios, permanecendo em silêncio por alguns segundos, levantando-a logo em seguida. Ergueu o copo de cachaça, movendo-o na direção de seus ébrios confrades. Um a um elevou o copo em resposta. — Um brinde aos nossos problemas! — disse ele, bebendo a pinga e fizemos o mesmo. Parecia que não, porém, todos se entendiam.
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