A traição das imagens

Nem tudo é o que parece. Ou é? Às vezes, sim, cara pálida. E pasmem, nesses casos, nesses nem tão raros casos, o cerne do logro não está no objeto, mas na expectativa que se faz dele – seja lá o que ele for.

Isso pode até soar estranho, mas acompanhem meu raciocínio.

Cada louco com sua loucura. Dias atrás eu trabalhava em um desses textículos quinzenais – sitiado e acossado por ironias, metáforas, e paradoxos – quando precisei guardar o mosto numa pasta. Apesar de comum e perfeitamente natural, havia o inconveniente de já haver um arquivo com o mesmíssimo nome no local, e o sistema (que não é bobo nem nada) perguntou, com a cara mais lavada do mundo, numa caixinha de diálogo sem vergonha: “Deseja substituir o arquivo nordestino?”. Naqueles milésimos de segundo de estupefação, pensei “Que diacho de arquivo nordestino é esse?”.

Minha vista me enganou, confidente leitor – e não foi a primeira vez (por favor, não conte a ninguém). Apesar disso, me assombro em toda ocasião. Não devo ser o único, visto que pesquisas recentes concluíram que esse tipo de ilusão emerge simplesmente da assinatura do modo estatístico e empírico como todos os dados perceptivos visuais são gerados. Se é alvo de estudo, vá lá, isso deve ser sério.

Surpreendido em flagrante, o cérebro, feito um adúltero safado, alerta, cobrindo-se com os lençóis: “Meu bem, não é nada disso que você está pensando!". Ora, quanta safadeza!

Abram os olhos com as imagens, estimados e mansos leitores, pois elas são bonitinhas e atraentes sim, mas nem um pouco confiáveis. Fico me perguntando se foi nisso que pensou René Magritte quando pintou em 1929 o quadro surrealista “A traição das imagens". Considerado um ícone da arte moderna, a imagem realista de um cachimbo é acompanhada pela inscrição “Ceci n'est pas une pipe”, que em português significa Isto não é um cachimbo.

Ora, e como não é? Não é não sendo.

A obra prima de Magritte desafia a convenção linguística de identificar uma imagem de algo como a coisa em si. Não se pode fumar o quadro, evidentemente. De maneira análoga, o conceito se estende a várias expressões artísticas, na música, no cinema, e até na literatura. Mas vivemos fazendo confusão com a expectativa criada.

Substituir o arquivo nordestino ou no destino? Ludibriado leitor, eu posso explicar. Não é nada disso que você está pensando...

É um poder extraordinário esse o da imagem, não acham? Valha-me, Deus do céu! E convenhamos: ela seria quase onipotente não fosse sua irmã, a palavra. Porque ela pode até induzir a uma ação ou pensamento – vide as campanhas publicitárias – mas as palavras... podem consagrar populistas, eleger corruptos, levar homens a guerra... ser motivo para a desgraça ou para a paz.

Sobre isso nos fala Guimarães Rosa em seu conto “Famigerado”. Nele, um médico do interior recebe a visita de quatro cangaceiros. Damásio, o líder do bando, assassino de renome na região, quer que o doutor explique o significado da palavra “famigerado”, pois tendo ouvido de um moço do governo, desejava saber se era um elogio ou escárnio (o que condicionaria suas ações a partir disso). Temendo pela vida do tal homem do governo, o médico dá ao fora-da-lei a acepção mais “simpática” da palavra: aquele que possui fama, célebre, notável. E o malfeitor se dá por satisfeito e vai embora – sem fazer mal a ninguém.

Fiat Lux, abracadabra, abre-te Sésamo, foi só um sonho, mamãe está aqui... as palavras são muito mais surpreendentes e persuasivas que as imagens – a neurolinguística pode provar isso (e se é alvo de estudo, vá lá, deve ser muito sério).

Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras. Eu não concordo. Porque ao contrário das imagens, dos números, reis ou ditadores, as palavras tem poder, um poder perene. E se assim são as palavras, o que se poderá dizer dos livros? Quantas palavras cabem em um livro? Um livro vale mais que mil imagens.