Um barquinho de papel
“Quem se apaixona por si mesmo não tem rivais.” (Benjamin Franklin)
O molequinho passou todo faceiro pelo portão. Caminhava de cabeça erguida, bochechas rosadas, cabelos colados no suor da testa, sorriso sapeca e satisfeito. As meias subiam esticadíssimas nas canelas e a bermuda deixava à mostra um joelho há três dias ralado. Às costas, uma mochila quase maior que o menino. Seguia em direção ao pai na calçada, exibindo a tarefa escolar na palma da mão em riste. O sol poente ofuscava-lhe o olhar quando cumprimentou o homem.
– Oi, pai! – disse num tom álacre, com o braço duro feito um galho, o cotovelo preso à costela.
– Oi, filho! Nossa… que lindo! É um barquinho de papel? – perguntou o pai ao abraçá-lo, beijando a cabeça úmida. Ato contínuo, tirou a mochila das suas costas e o segurou pela mão, conduzindo-o.
– É um “urigami”… – respondeu sem dar muita relevância, como se desvencilhasse de um assunto no caminho do que era mais prestigioso. – Hein! A tia disse que eu sou especial! – publicou, num tom quase solene, quando passaram por minha desimportância conjuntural.
– É mesmo, filho! Que legal!
– Ela perguntou quantas pessoas eu conhecia que sabiam fazer um barquinho assim e eu não lembrei de ninguém…
– Eu também sei!
– Então você também é especial, pai! – afirmou, prontamente, o menino, de mãos dadas com o pai, enquanto seguiam na calçada, numa distância em que eu já não podia ouvir mais do que fragmentos sem sentido.
Ora, ora, redivivo leitor. Quantas e quantas vezes na vida a gente fica por aí arrastando corrente e chutando pedrinhas, sentindo-se, como dir-se-ia antigamente, o cocô do cavalo do bandido? E a gente é tão sem-vergonha que os motivos, os mais variados e esdrúxulos, vão desde pé na bunda a ônibus perdido. Pode isso Arnaldo? A regra é clara, não pode, mas repito: a gente é muito sem-vergonha.
Vê bem, pode até parecer piegas, mas acompanhem, o raciocínio do Tio Pacheco. Nesse Brasilzão de meu Deus onde há cerca de 214 milhões de habitantes, o camarada a quem calhou nascer justo em Nova Friburgo pode se considerar especial. Não é? Claro que pode. E num mundo em que o percentual de destros na população é de noventa por cento, o canhoto pode, igualmente, julgar-se especial. E por aí vai. A fórmula funciona para qualquer cidade, qualquer característica, e qualquer situação, porque não é necessariamente a distinção promovida por uma peculiaridade que nos torna privilegiados e especiais, e sim, o conjunto delas que garante a singularidade inequívoca de cada um. Uma criança que sabe fazer dobradura é especial? Claro que é. Assim como a que não sabe também é.
Entenda bem, cara pálida, não se trata o textículo corrente de um arroubo da moderna positividade tóxica ou coisa do tipo, não é disso que se trata. Deus me livre e guarde. Andar cabisbaixo uma vez ou outra é natural e compreensível (quem nunca?). O que devemos evitar é tornar isso um hábito, esquecer o amor-próprio e baixar a cabeça num muxoxo toda vez que perder um ônibus ou o dia amanhecer nublado. Terráqueo, você, assim como o molequinho do “urigami”, é especial por muitos motivos e não precisa da tia da escola para saber disso – nem mesmo de um cronista que fica por aí escutando a conversa dos outros. Por esse e muitos outros motivos, em todo portão por qual atravessar, respire fundo e sorria satisfeito, caminhando de queixo erguido, ainda que tenha ralado os joelhos algumas vezes e que o peso nas costas pareça maior que você. Isso é tão singelo e prosaico que inclusive uma criança é capaz de compreender. É simples feito um barquinho de papel.
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