Quem foi que falou?
“Ninguém quer o bem público que não está de acordo com o seu.” (Jean Jacques Rousseau)
O que é de todo mundo, não tem dono nenhum. Já ouviram essa? “Si publicus est, pulmentum est”, diria Platão, Sócrates e talvez Gérson. É uma verdadeira zona, fanfarronice. Balbúrdia. Quem presta o serviço o realiza ao melhor estilo "embrulha-e-manda", de qualquer maneira; quem usufrui lhe dá a importância de um favor. Por isso, a frequente falta de respeito ao cidadão, em paralelo ao vandalismo e parco cuidado com os bens e serviços públicos. E vem alguém dizer que está tudo bem? Não está tudo bem, não, terráqueo.
É exatamente assim. Ou não? Aliás, aqueles que podem pagar por um serviço diferenciado também estão dentro d’água; parcela da população que não é nem cacique, nem índio, e passa os dias arrotando streamings, transporte, saúde, e educação privados, mas que na verdade fazem uso de um “público gourmet”, de qualidade facilmente questionável. Responda francamente, meu senhor, se não é dessa maneira que se sente quando marca uma consulta médica naquela clínica bonitinha (somente) para o mês que vem. E de lambuja, faltando dois dias, alguém liga desmarcando o atendimento porque “Doutor Fulano teve um imprevisto”; a vaga mais próxima para remarcação é para daí outro mês, num horário em que você não pode, inclusive.
Puta que pariu. Puta que pariu, cara pálida. Perdoe o calão do cronista, entretanto, não há termo no popular vocabulário tupiniquim que melhor defina o estado de frustração. Foi isso o que eu disse, murmurei entre os dentes, e pensei, num muxoxo, enquanto aguardava um ônibus no final da Euterpe Friburguense, às dezessete horas de uma quinta-feira. Sim, terráqueo, o carro estava no mecânico, outra vez. Ahn? Isso, suspensão, de novo. O camarada que nunca quebrou ao menos um item da suspensão do carro peregrinando nas ruas de Nova Friburgo, não sabe o que é emoção. Tá pensando o quê? A gente é off-road, ô, rapá!
O ônibus passou cerca de quarenta minutos depois, com passageiros imprensados contra a porta. Entrei como podia, segurei-me como podia. É esse aí, o serviço público concedido. Táxis ou outro tipo de transporte privado urbano, seriam uma pequena fortuna naquele horário, então... o melhor a fazer era baixar a bolinha e ir para casa num Mercedes.
Cheguei após outros quarenta intermináveis minutos, esbaforido e suado. Beijinho na Dona Maria, nos garotos, afago no pinscher, banho e jantar. Anedotas das mais variadas sobre as desventuras de um pai de família na volta para casa. Gargalhadas gerais, rosto ruborizado. Recolhíamos a louça quando o mecânico ligou, lá pelas sete e meia, informando a conclusão do serviço, as peças trocadas, os valores, fazendo um comentário incidental sobre nunca ter visto coisa parecida. Vai por mim, Tico: a gente é sempre capaz de se surpreender.
Fiz apenas um bochecho rápido, troquei a roupa e desci apressadamente... estava quase perdendo o ônibus. Só faltava essa, né? Cheguei ao ponto, ofegante, na hora exata. Graças a Deus, ele ainda estava lá. Desligado, até. Aproximei-me da porta de entrada, as luzes todas apagadas, nem sinal de outros passageiros – nem mesmo do motorista. Ora, o que será isso?
“Quem foi que falou?”, surgiu cantando, fora do ritmo, o condutor, arrastando os pés pelo corredor do coletivo. Abriu a porta e saiu em seguida, ignorando solenemente minha presença. Como assim? Fiquei confuso. O verso correto é “Quem me chamou", não é uma pergunta; a música é “Brincar de viver” e não é da Maria Bethânia. E mais importante do que isso tudo, estava na hora da partida do ônibus e ele não se manifestava nesse sentido. Suspirei, enfastiado.
O motorista voltou quase dez minutos depois, com a cara mais lavada do mundo, cantando o mesmo verso errado em looping. A gente atrasado e o cara cantando? Parecia até deboche. “Amigo, não esta na hora, não?”, perguntei, aborrecido. A resposta veio toda desconexa, confundindo mais do que explicando. “O trânsito estava ruim, é o horário do meu intervalo", respondeu já dentro do carro, virando a chave. “Ó, sacanagem, o trânsito... e... o horário do meu intervalo”, repetiu, no momento em que eu o pagava e cruzava a roleta. Sentei-me. “Mas você não tem que cumprir a rotina da linha, não?”, perguntei, não satisfeito. “Você tá com pressa? Tem algum compromisso?”, perguntou, numa dicção desdenhosa. Puta que pariu, de novo, cara pálida. Não acredito que ele me perguntou isso.
(Oito e meia. Até chegar ao centro, uns vinte minutos; até pegar meu carro, mais vinte; outros vinte pra chegar em casa, novamente. Puta que pariu. Nove e meia, dez horas, nessa brincadeira.)
“É lógico que eu tenho compromisso, senão, não tinha nem saído de casa, não é?”, respondi, já alterando o tom de voz. Ele arrancou com o ônibus e não me respondeu, murmurando consigo mesmo sobre o intervalo, a necessidade imperiosa de cumpri-lo, e cantando novamente aquele verso da canção. Só pode ser uma espécie de pegadinha. Quando eu achava que nada mais podia me surpreender, eis que o gente fina para o coletivo, sem aviso, desce e ruma à padaria do bairro. Assim, sem mais nem menos. E eu sozinho. Mas que grande sacana! É disso que estou falando, terráqueo. Dependa do serviço público, qualquer um. Seja ônibus, hospital, escola, qualquer coisa. Cada um faz o que que quer, do jeito que lhe convir.
Oito e quarenta – e nada do motorista. Eu, fulo feito um siri na lata. Neste momento, uma ideia subversiva surgiu, feito um pássaro, sobrevoando minha cabeça... Levantei-me e aproximei-me do cockpit. O coração batia forte, o estômago contraía-se. Havia somente eu no ônibus… a chave na ignição, o motor virando. Por que não? Pulei a roleta. Ora, não deve ser muito diferente do que um carro. Consideravelmente maior, é claro, o jogo para curvas devia ser mais ascendente, o peso maior nos declives. Permaneci por segundos encarando o volante e os demais instrumentos. Suspirei e sentei-me no banco. Pus o cinto. Melhor não pensar muito.
Soltei o veículo, engatei a primeira e arranquei. Ainda pude ver o motorista vindo correndo em minha direção, mas era tarde. Segui cauteloso, mantendo uma aceleração leve, porém constante, reduzindo nas curvas. Ignorei alguns poucos passageiros nos pontos, desrespeitados, assim como eu. Enquanto dirigia, refletia sobre as possibilidades de chegar até o centro da cidade. Não, não... não poderia. O melhor seria parar em algum lugar da Chácara, abandonar o ônibus e seguir o restante a pé, porque as câmeras.... Câmeras? Puta que pariu!
O motorista voltou, finalmente. De fato, as ideias subversivas são como pássaros: não podemos impedir que sobrevoem nossas cabeças, mas podemos impedir que aí não façam ninhos. Controlei a respiração e o humor… imagina leitor, a manchete no dia seguinte: “Cronista de popular portal de notícias preso por sequestrar ônibus”! Mas que vontade… que vontade, meu senhor!
Parêntese oportuno, é aí que reside o perigo: quando um serviço público é ineficiente, mau ou não prestado, o primeiro impulso é realizá-lo por conta própria – o que, definitivamente, não sana o problema. Nessa toada, entramos num círculo vicioso de falta de respeito e desleixo com os bens e serviços públicos, ad aeternum. Qual a solução, afinal? Votos melhores, fiscalização mais incisiva dos agentes públicos? Não sei se isso é suficiente. Não sei. Conscientização é um bom começo. Fato é que sempre haverá alguém para cantar um verso errado, como se estivesse tudo bem. Não está tudo bem, terráqueo.
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