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O inimigo da vez

Por George dos Santos Pacheco
04/09/24 - 10:09

"Deve-se aprender sempre, até mesmo com um inimigo." (Isaac Newton)

Basta correr os olhos brevemente sobre a história da humanidade para perceber que toda sociedade e toda época elegeu para si seus heróis e seus inimigos. Hábitos, costumes, líderes políticos e religiosos, produtos, semiprodutos, doutrinas econômicas... todos eles já estiveram de um lado e de outro, defendidos e atacados com unhas e dentes por asseclas e opositores. Claro e evidente que isso sempre se deu por conta de (nem sempre) velados interesses... segundas, terceiras intenções. Esse, contudo, não é mote de nossa crônica. Não hoje.

Os (quase) oniscientes e onipresentes aparelhos de Althusser nem precisam se esforçar muito para nos convencer, por meio de discursos, estudos, teorias, notícias falaciosas, dados estatísticos superficiais ou tendenciosos... determinando quem é quem: o bom, o mau, e o feio. Não adianta contestar ou contra-argumentar, não é mesmo? Afinal, está lá, nas folhas impressas, nas telas, nos púlpitos, corrompendo o mais esclarecido dos homens.

Não sei se me faço entender... talvez nem eu mesmo me entenda. Apresso-me, contudo em explicar-me, há sempre esperança. Hum-hum, prestem bastante atenção. O cigarro. O dito cujo já foi símbolo de elegância e status. O ovo de galinha fazia mal à saúde, a manteiga, idem. O rock degenerava a juventude, os romances literários afastavam os sujeitos dos padrões conservadores. Os ursinhos de pelúcia (quem diria?) corrompiam o instinto maternal das meninas ao substituírem as bonecas, e as palavras cruzadas (até elas!) impunham medo e terror... Dá pra acreditar, cara pálida?

Pois é. Para chegar onde pretendo, tomemos como objeto específico deste script as palavras cruzadas, meu senhor. A brincadeira era considerada "brutal" e "antissocial" por veículos de prestígio, como o jornal americano The New York Times e a revista britânica Times. A propósito, segundo um artigo de 1924, intitulado "Uma América escravizada", o jogo era um "passatempo de alguns ociosos engenhosos para se tornar uma instituição nacional e quase uma ameaça nacional". Estimava-se, inclusive, que mais de 10 milhões de pessoas gastavam meia hora por dia resolvendo-os, quando deveriam estar trabalhando. Uma esposa britânica levou o marido à Justiça por ficar na cama até às 23 horas fazendo palavras cruzadas!

Tudo isso soa-lhe, de alguma maneira, familiar? Exatamente, distraidíssimo terráqueo. O celular, com o acesso rápido a internet, com aquele monte de aplicativos multitarefas, joguinhos, redes sociais, antissociais e o escambau, chacoalhando no aparelho… por que causa, motivo razão ou circunstância ele não é o inimigo da vez? É isso que me causa estranheza e até repulsa. Levamo-lo ao banheiro, à cama, ao trabalho, à puta que o pariu. Basta correr os olhos brevemente sobre a sociedade contemporânea para perceber que o uso indiscriminado da tecnologia é muito mais pernicioso que uma palavra cruzada foi à sua época. Uma esposa tupiniquim só não leva o marido à Justiça por ficar na cama até às 23 horas usando o celular porque provavelmente ela também o está usando.

Ora, ora. A mágica acontece quando o homem de fraque e cartola meneia a mão esquerda, amigo leitor. "O trabalho físico pesado, o trato da casa e dos filhos, as briguinhas com a vizinhança, o cinema, o futebol, a cerveja e, acima de tudo, o jogo, enchiam-lhe os horizontes. Mantê-los sob controle não era difícil", proclamou certa feita Orwell, meu xará. Putzgrila. Se a inteligência artificial, as apostas em jogos de futebol, as novelas, a avalanche de séries no streaming, a porra do celular, não são o inimigo da vez, quem é, então? Epifania providencial e oportuna, talvez a pergunta esteja errada: "por que" eles não o são? Pelo mesmo motivo que as palavras cruzadas deixaram de sê-lo... simplesmente, por servirem mais ao propósito do sistema do que o estorvar.


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