Não era nada disso
“Há coisas que melhor se dizem calando.” (Machado de Assis)
Senhores membros do júri, excelentíssimo Senhor Juiz. O que trago hoje a esta mui digníssima assembleia são provas irrefutáveis de que pelos mais variados motivos, uma vez ou outra, o terráqueo tem de escolher entre silenciar, dizer o que queria, lançar mão de súbitos eufemismos – e até enunciar justamente o oposto do que pretendia. Diante disso, não me condenem, pois embora fira-me o orgulho reconhecer o fato, preciso confessar que não era bem isso o que eu queria dizer.
Acontece nas melhores famílias, não é? Mas antes de tirarem conclusões precipitadas a respeito, tudo isso apresento solertemente em minha defesa: César, ferido de morte em pleno senado romano, disse “Até tu, Brutus?”, mas eu creio que ele queria mesmo era dizer “Brutus, seu filho de uma égua!”; Dom Pedro proclamou “Digam ao povo que fico!” e “Independência ou morte", mas eu acho que não era bem isso o que ele queria declarar – se é que desejava declarar alguma coisa; Juscelino exortou “Olhai agora para a Capital da Esperança do Brasil”, contudo, o que rutilava em sua mente era “Oscarzinho, puta que o pariu, ficou maneiro pra cacete!”; quando o professor perguntou no final da aula se havia dúvidas, ninguém se manifestou, mas eu tenho certeza que alguém gostaria de fazer ao menos uma pergunta; diante do pedido de aumento salarial, o patrão argumentou “Você é um dos nossos colaboradores mais competentes e responsáveis, mas infelizmente a empresa está passando por um momento complicado…”, contudo, o que ele queria dizer mesmo era “nem ferrando!”.
Admita, cara pálida, você já escolheu as palavras até para Dona Maria quando ela perguntou sobre aquela receita ou sobre o vestido novo. Claro que fez (quem nunca?). O homem é senhor do que cala e escravo do que fala. Trata-se de um comportamento deliberado ou inconsciente que se revela um paradigma social inquestionável – mais um daqueles nossos itens de fábrica. Quer ver? Lembrei desses e (tantos) outros casos na fila da lotérica, já com o boleto e dinheiro em mãos, os convites para uma aposta espalhados nas paredes assim como os resultados. O sujeito da frente, um senhor de cinquenta e poucos anos, camisa social de viscose num único tom verde, questionou cheio de razões (no corte da conversa que presenciei) com um terceiro cliente a legitimidade do ofício do artista de rua. Ora. Eu não concordava de maneira alguma com ele. Franzi o cenho, olhei para cima, cocei queixo. Eu possuía mais que meia dúzia de argumentos para o debate, mas pensei bem, graças a Deus. Em primeiro lugar, a conversa nem era comigo; em segundo, eu não o convenceria em dois minutos de palestra a mudar de opinião. E em terceiro lugar, para quê? Saramago prescreveu que “o trabalho de convencer é uma tentativa de colonização do outro”, e fiei-me em seu pressuposto (mesmo não tendo certeza se era isso mesmo o que ele queria prescrever).
Veja, compreensivo leitor, essas situações acontecem todo dia e em todo lugar, em todos os círculos, com qualquer pessoa e por todos os meios. Tête-à-tête, vis-à-vis, e inclusive wi-fi. Quantas vezes você balbuciou e mastigou mingau sem saber exatamente o que dizer? Quantas vezes já se arrependeu do que disse (ou de não ter dito)? Quantas vezes alterou uma resposta antes de enviá-la num aplicativo de mensagens, ou a apagou logo em seguida, para surpresa do interlocutor? Ahn? Apesar de parecer antiético e até amoral, não há mal nenhum nisso, desde que não se trate de uma premeditada omissão de informações em benefício próprio ou que não prejudique alguma pessoa, reste claro. Deixemos, de uma vez por todas, o acessório e concentremo-nos, portanto, no essencial: em que pese o pudor em admitir, não era nada disso o que eu pretendia dizer.
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