Fátima
“Passo o dia inteiro esperando a noite chegar, porque não há mais nada que eu queira fazer.” (Pitty)
A pequena cidade, de ares provincianos e bucólicos, estava se tornando cada vez mais populosa e violenta. Essa triste realidade se traduzia nos números divulgados pela polícia e nas pavorosas notícias nos jornais. Eram casos de furtos, roubos, assassinatos, arrombamentos, tráfico de drogas, estupros e assaltos (em plena luz do dia). Os cidadãos tinham medo, um medo velado e inconsciente, que os fazia imprimir em suas vidas hábitos e costumes nada ortodoxos e empáticos. O governo era míope ou omisso, mas nada disso importava, pois a inércia em ações é que fazia crescer no vácuo da onipotência política, toda sorte de vigilantes e justiceiros que agiam nas sombras, à sua própria maneira e sem qualquer tipo de escrúpulos.
O trabalho era seu amparo. Era alto, forte, malhava três vezes por semana. Sentado à mesa do escritório, de gel nos cabelos e trajes sociais, refugiava-se na emissão de documentos, estatutos, registros de fundação e dissolução de sociedades civis, religiosas, científicas e políticas. Após um evento trágico em sua família, decidiu que precisava fazer alguma coisa. Aulas de defesa pessoal e combate corpo a corpo, envolvendo técnicas de luta, defesa contra armas, bastões, facas e golpes não lhe foram suficientes. Passou a andar armado, para sua própria defesa e de outrem, pessoas mais vulneráveis. O mundo está cheio de gente maluca, afinal.
Todas as noites, ouvia a rádio da polícia num velho aparelho que ganhou certa feita de um cliente, enquanto realizava exercícios calistênicos, antes de sair. Conhecia assim os lugares mais perigosos da cidade, aqueles em que nenhuma pessoa sensata se atreveria a estar. Ninguém jamais desconfiou de nada. O rapaz do cartório, calado e propositalmente atrapalhado, de camisa de gola e óculos de aro redondo, constituía o disfarce perfeito.
Seu ritual era meticuloso. Flexões e abdominais, um banho rápido e a escolha do mesmo traje negro, colado ao corpo. Calçava a bota de couro e substituía os óculos por lentes de contato. Punha a máscara sobre os olhos delineados e saía sorrateiramente, para não despertar a curiosidade dos vizinhos. Às vezes, recebia uma ligação no telefone vermelho e apenas depois, mergulhava na noite. Somente as calçadas e becos escuros conheciam seu alter ego, a sua verdadeira face.
Durante o dia ele era apenas um homem qualquer, um cidadão comum, acima de todas as suspeitas. À noite, naquela famosa esquina, não tinha medo de nada e nem de ninguém – por que deveria? Não precisava de defensores; ele era o seu próprio arrimo, e disso tinha orgulho. Esvoaçando a capa negra, batendo delicadamente os saltos na calçada em seu trottoir, ele era conhecido como… Fátima.
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