E eu ainda tenho que ficar contente?
“Nada é verdade, tudo é permitido.” (Hassan-i Sabbah)
Precisei resolver um compromisso no centro da cidade, em plena sexta-feira de Carnaval. “Tem certeza que não pode ser outro dia?”, perguntei à Dona Maria, com o semblante triste. Mas ela foi categórica: tem que ser hoje. Suspirei, resignado. Detesto sair de casa nesses dias muito agitados, mas vá lá, fazer o quê. O que precisa ser feito, deve ser feito. E já que deve ser feito, vamos logo com isso.
O trânsito de casa até o centro da cidade estava relativamente bom, mas chegando lá, terráqueos... putzgrila. A impressão é que havia o dobro de friburguenses nas ruas (caraca, de onde saiu tanta gente?), todos felizes e sorridentes, ainda que não pulassem Carnaval, ocupados com seus afazeres, empregos, ou simplesmente tumultuando a minha cidade, apenas por esporte. Não é que eu não goste de Carnaval, cara pálida – eu já falei sobre isso aqui, mas não custa repetir – eu não gosto é de tumulto e larga permissividade (ah, de sair de casa em dias agitados e de não encontrar vaga para estacionar também).
Deixei o carro em um estacionamento privado (é óbvio) e segui caminhando pela calçada de uma molestada Alberto Braune, rumo ao meu compromisso. O tempo estava abafado e carregado de nuvens, em breve cairia, ao menos, uma garoa. Apertei o passo. No meio do caminho, olhei para trás indignado, e quando tornei a olhar para frente, percebi um amigo que não via há muito tempo, caminhando no sentido contrário.
– Fala aí, irmão! Tudo bem? – cumprimentou-me, simpático, estendendo a mão para um forte aperto. – Que cara amarrada é essa? – perguntou ele, logo após, ao observar meu semblante indócil, e chegamos para o canto da calçada para continuarmos a conversa.
– Porra, acabaram de passar mão na minha bunda… – respondi, após um suspiro enfastiado, desviando o olhar para os foliões e transeuntes pelo passeio, como se procurasse o meliante a fim de dar-lhe um pito. Ora, essa.
– Fizeram o que? – perguntou rindo, quase em retórica, pois havia escutado perfeitamente bem.
– Passaram a mão na minha bunda, cara. – repeti, num exacerbado tom indignado, voltando meu olhar a ele, sentindo o ar expirar fortemente pelas narinas e a respiração perder, aos poucos, a velocidade.
– Relaxa irmão, é Carnaval... – amenizou ele, simpaticamente, no momento em que alguns confetes caíam sobre nós, atirados por uma criança que caminhava de mãos dadas com os pais, acotovelando-se com pierrôs, arlequins e colombinas.
– Não foi nem uma alisadinha não, tocaram a mão na popa direita com força. Eu cheguei a dar um salto enquanto caminhava… – murmurei, franzindo os lábios, num arfar incomodado. Alguns homens travestidos de mulheres, de meias arrastão, saias curtíssimas e perucas coloridas passaram por nós em uma algazarra de cornetas.
– É Carnaval, cara! É Carnaval… – repetiu meu amigo, como se isso legitimasse qualquer coisa, retirando os confetes do meu ombro, usando tapinhas com as costas dos dedos.
Ora, é Carnaval… Passaram a mão na minha bunda e eu ainda tenho que ficar contente, só porque é Carnaval? Eu não vou, não, me recuso. Por que o Carnaval é justificativa para a negligência, para a bagunça, para a falta de respeito? Ah, é Carnaval, então vamos passar a mão na bunda dos outros; ah, é Carnaval, então vamos estacionar o carro em fila dupla; ah, é carnaval, então vamos dirigir embriagados; ah, é carnaval, então vamos jogar o lixo na rua mesmo; ah, é Carnaval, então vamos urinar publicamente…
“Deixa de ser resmungão, Pacheco, e se diverte um pouco!”. Ô, terráqueo. E a gente não pode se divertir sem incomodar os outros não, é? Vamos beber, brincar, dançar ou só descansar, mas com um mínimo de civilidade. Tem como? Pode ser? Esse hábito de justificar um mau comportamento pelo Carnaval, demasiadamente comum em nossas plagas – mas tão abjeto que nem deveria figurar em crônica pretensamente séria – tem seu correlato desde tempos imemoriais, discursado em latim, tupi-guarani, nheengatu e português: “Ah, mas aqui é Brasil, não é?”, como se aqui fosse uma espécie de área livre de ética, valores e moralidade, onde tudo se pode. Tá de sacanagem, né?
Pois, então, o que eu pretendia dizer: por conta dessas desventuradas premissas de tom carnavalesco e a nossa brasilidade é que falcatruas e desvios de conduta se sucedem um após o outro, dia após dia, no meu Brasil Varonil. Entra ano e sai ano, é sempre a mesma coisa. Exagero meu? A ideologia nefasta em lide está enraizada num nível cultural tão profundo que a gente vê e considera normal, momesco leitor. É sinônimo de jogo de cintura, orgulho de ser brasileiro, quando, na verdade, devia ser motivo de vergonha.
Resumo do samba-enredo campeão: a loja em que eu tinha um compromisso a resolver (adivinha?) estava fechada e só abriria na Quarta-feira de Cinzas. E eu fui ao centro da cidade apenas para pagar doze contos de estacionamento, levar uma apalpadela no traseiro e para tomar um bocado de chuva – choveu pra caramba. Ah, e encontrar um velho amigo, não podemos esquecer. Mas está tudo bem... tudo bem. É Carnaval, não é mesmo?
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