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Deve haver alguma explicação

Por George dos Santos Pacheco
23/08/23 - 09:30

“Todos nós somos um mistério para os outros... e para nós mesmos.” (Érico Verissimo)

A assembleia estava lotada. O caminho da noiva fora impecavelmente adornado com faixas de tule branco e arranjos de sempre-vivas e copos de leite, emprestando um tom clássico e elegante à cerimônia. Um luxo. As madrinhas metidas em longos vestidos monocromáticos, que pouco se distinguiam uns dos outros, competiam pelos decotes mais ousados, ombros de fora ou rasgos nas saias que expunham parte das pernas. Os padrinhos, em ternos de tons cinza (e gravatas da mesma paleta de cores), competiam nas piadas sobre o mais novo cativo. Estávamos todos lá: Lalau, tia Zulmira e eu, primo Altamirando e eles, murmurando baixinho, procurando alguma explicação.

Boatos em formas vagas e desfiguradas circulavam no burburinho dos bancos de madeira. O noivo aguardava no altar há exatos quarenta minutos, num smoking bem cortado e banhado em suor, movendo o olhar para o relógio prateado com pequenos marcadores dos dias da semana e do mês, em intervalos cada vez mais reduzidos. A mãe enxugava-lhe a testa, no semblante um misto de impaciência e preocupação moldava seu olhar. Culturalmente as noivas atrasam, é bem verdade, também ela atrasara para o finado marido, que Deus o tenha. Mas aquilo já beirava o absurdo, era uma audácia sem tamanho.

Uma hora, uma hora e meia. O padre então cobrou, num tom taciturno e severo, uma posição quanto à noiva, não podia mais esperar. Afinal, tinha outros compromissos – quem não os tem? E enfim, a surpreendente confirmação: não viria. “Como assim, não vem?”, sussurrou Tia Zulmira. Não vem. “Não vem, mas vem depois? Outro dia?”. Aí não sei. Apenas não vem hoje.

Deve haver alguma explicação para evento tão singular, inusitado e insólito, desses que você pensa consigo mesmo que jamais em sua vida imaginou presenciar. Digo, sempre há. Pois foi exatamente – advérbio mal empregado, não foi “tão exatamente” assim – o que aconteceu na despedida do Gambiarra. Não pude evitar a analogia, afianço, perplexo leitor.

Eis que Fernando, vulgo Gambiarra, amigo de longa, bem humorado, excelente profissional e jogador de baralho nas horas de almoço, era a noiva naquele dia. Despedia-se da instituição após mais de quarenta anos de serviços prestados. Qua-ren-ta! E a gente não podia deixar isso passar em branco, é claro. Preparamos churrasco, lembrancinha, homenagens, (tinha até Raça Negra no bluetooth), enfim, tudo que o amigo fazia jus. Estávamos todos lá, numa área social cheia, repleta, abarrotada, fazendo piada e procurando alguma explicação.

Boatos em formas vagas e desfiguradas circulavam no burburinho das cadeiras de plástico. Já havia saído pãozinho com pasta de alho, drumete e linguiça. Carne mal passada, ao ponto e bem passada. A cerveja já deixava alguns olhos baços e labirintos levemente confusos. E nada do Fernando. “Liga pra ele aí, Poubel!”. Enfim... não viria. “Como assim, não vem?”, perguntou alguém, rolando a comida pro canto da boca. Não vem. “Não vem, mas vem depois? Outro dia?”. Aí, não sei. Apenas não vem hoje.

“Em todos esses anos nessa indústria vital, essa é a primeira vez que isso me acontece”. Hoje a gente ri e faz piada, mas é claro, ninguém esperava por algo assim, cara pálida. Ninguém! Um cara que deixa de ir à própria despedida é algo surreal e ilógico, feito uma noiva ausente ao casamento. Contudo, o que não falta nessa vida, confuso terráqueo, são coisas (ainda mais) surpreendentes e (aparentemente) sem esclarecimento. Pois, embora não saibamos, deve haver alguma explicação razoável para isso. Inclusive para o preço dos livros, o preço da gasolina, para a culpa, a inflação crônica, o lixo mal descartado nas ruas, para a inveja, o longo aprazamento das consultas no sistema público de saúde, o ciúme, o revanchismo político, a violência urbana, o preconceito e a vaidade. Digo, sempre há. Por Deus, tem de haver.


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