Desabafo
“Por que me arrasto aos seus pés? Por que me dou tanto assim? E por que não peço em troca. Nada de volta pra mim?” (Roberto Carlos)
“Por muito tempo Aureliano não abandonou o quarto de Melquíades”, disse Garcia Márquez, na página 327, de Cem anos de solidão, trabalho considerado uma das obras mais importantes da literatura latino-americana. Trata-se do oitavo livro que leio este ano, após Um certo Capitão Rodrigo, Sagarana, O alquimista, A caçada ao Outubro Vermelho, Uma janela em Copacabana, Berenice procura, e 1984. Acha pouco, terráqueo? Dá uma média de um livro por mês, algo razoável para uma leitura aprazível e minuciosa de um cara com costume de avaliar palavras, sentidos, e entrelinhas. Ah, sim. As tão negligenciadas entrelinhas.
Ah, cara pálida, longe de mim ter de defender os livros ou qualquer tipo de leitura, que seja. Precisam de defesa? Está mais do que provado que o hábito estimula o senso crítico, o raciocínio lógico e enriquece o vocabulário, coisas das quais nunca estivemos tão carentes. O problema é que, na contemporaneidade, os livros são tão relegados a segundos, terceiros e (quiçá) quartos planos, que o absurdo corrompe a realidade, o comum acaba se tornando legítimo e (putzgrila) a tutoria vem a ser imperativa e premente.
Acompanhe este singelo raciocínio, meu senhor. A política nacional se ocupa desde tempos imemoriais a inventar problemas domésticos para vender soluções caseiras, miraculosas e invariavelmente intragáveis, que são digeridas resignadamente pelo tupiniquim. O senhor percebeu como veio à tona o aumento da gasolina, por exemplo? Trata-se de valor irrisório, após um longo período de equilíbrio. Sério, isso? Alguém notou a mudança de tom no discurso das autoridades, as intenções nas entrelinhas das decisões governamentais, as discretas tendências do telejornal? E cá, nestas plagas, os puris mais atentos perceberam que retiraram, enfim, os postes natalinos da Alberto Braune? Que estão fechando o acesso nunca utilizado do Paissandu para a Rua do Arco? A senhora atravessando a rua, os pedintes nos sinais, as árvores que só dão flor nessa época do ano?
Evidente que não. Sabem por quê? Porque estamos distraídos demais caminhando com olhos vidrados na tela do celular, conferindo uma pseudo-emergência que urge no aplicativo esmeralda ou enviando áudios de três minutos e quarenta e nove segundos para não dizer coisa com coisa a impacientes interlocutores. Não reparamos nessas e outras coisas porque estamos mais interessados nos problemas conjugais de uma cantora, no atentado sofrido por um político estrangeiro, polêmicas em reality shows, os gols da rodada e uma figurinha nova no aplicativo de mensagens.
Mas o que, o que meu Deus, os livros e a obra de Garcia Márquez tem a ver com tudo isso? Perdoe o desabafo do cronista, esclarecido leitor, mas estamos todos presos no quarto de Melquíades, ignorando as ruínas de Macondo, como se nosso futuro fosse inabalável, predito muito antes de nascermos por um ancião excêntrico. Pergunto-me a cada dia, a cada notícia falaciosa, a cada absurdo social e político, por quanto tempo permaneceremos alheios ao mundo real, como se cativos numa realidade própria e fantasiosa, e não encontro resposta.
Talvez ela não exista. Senão, vejamos: eu e todas a gerações que me precederam ouvimos desde os cueiros que o Brasil é o país de todos, da reconstrução, do futuro. Que reconstrução é essa que nunca se conclui? Que futuro é esse que jamais chega? A impressão é que vivemos caminhando em círculos, correndo atrás do próprio rabo, que tudo isso é balela, uma conversa fiada pra manter-nos ocupados numa utopia, e tudo se repete e se repete eternamente até que viva o último brasileiro.
Para que fique mais claro, vou desenhar: ao contrário do estabelecido no parágrafo primeiro, versículo três, o consumo de oito livros em seis meses é um número relativamente alto, se considerarmos a média brasileira de leitura de cerca de quatro livros por ano, segundo a 4ª edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil. E a justificativa mais esfarrapada para isso é o preço dos volumes (como se não houvesse uma só biblioteca pública do Oiapoque ao Chuí). Uma coisa nada tem a ver com a outra. Quem quer encontra um motivo, quem não quer arranja uma desculpa.
Os livros não nos são mais caros que a ignorância, terráqueo. Apesar de piegas e lugar-comum, são eles as melhores ferramentas para abandonarmos o quarto do cigano, para, talvez, não sermos arrasados pelo vento e desterrados da memória, condenados a cem anos de solidão. Acha pouco, terráqueo?
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