Crônica de Natal
“Anoiteceu, o sino gemeu. A gente ficou feliz a rezar. Papai Noel, vê se você tem. A felicidade pra você me dar” (Assis Valente)
Curioso como algumas pessoas passam a vida inteira se enganando. Tem cara que não come uma frutinha sequer durante o ano, mas nos vinte e cincos de dezembros faz questão daquela mesona repleta de abacaxis, melancias, uvas, pêssegos, nozes, etc., etc.. Não é paradoxal? Até porque na competição com as rabanadas, as frutas levam uma absurda desvantagem. Pura enganação. Mas quem é que está ligando para enganos e desenganos em pleno Natal?
A ceia estava um espetáculo, não posso negar. Além das frutas (é... mamãe é dessas que fazem questão), tinha o pernil, a farofa, a maionese, e o famigerado e consagrado arroz com passas. Minha mãe pode até ser incoerente, mas manda muito bem na cozinha. Ainda empanturrados com as guloseimas e um tanto ébrios de vinho (o licor da uva tem um quê meio religioso e formal que outras bebidas não tem), brincamos do tradicionalíssimo “amigo secreto”. Mais enganação: um monte de gente com birra um do outro, rasgando a maior seda antes de entregar o presente. É evidente que o Natal é uma excelente oportunidade para reconciliações, mas não dá pra “ter um milhão de amigos" feito o Roberto Carlos só no fim do ano.
Vi-me, de repente, largado sozinho em pleno silêncio. Acordei atordoado, por alguns segundos, sem saber exatamente onde estava. Ah, sim... Ficamos bebendo e jogando conversa fora até meados da madrugada. Definitivamente, cadeiras não são o melhor lugar pra dormir.
Esfreguei os olhos e alonguei brevemente o pescoço. Foi então que percebi alguém gritando por socorro, bem, bem distante... mas a frequência dos gritos aumentava gradualmente. Cerrei os punhos e passei nos olhos outra vez, levantando-me, intrigado. Pé ante pé, segui sorrateiramente até a origem dos sons... era uma voz masculina, idosa, e de timbre grave.
– Quem é? – perguntei desconfiado, na sala de estar, toda revirada com papéis de presente espalhados, algumas garrafas, taças e pratos com restos de guloseimas na mesinha de centro.
– Ora, sou eu! – respondeu a voz, embora eu não pudesse ver seu dono.
– Eu? Como assim “eu"? – redargui, aproximando-me mais da origem. Segurei uma daquelas garrafas pelo gargalo, preparando-me para uma eventual defesa. Vai saber?
– Eu, pô. Tô aqui na chaminé. Me ajuda aí, eu fiquei entalado.
– Papai Noel?
– Você descobriu isso sozinho, meu filho? Estamos em dezembro. O Coelhinho da Páscoa é que não seria.
– Você está de sacanagem comigo? – perguntei bestificado. Eu ainda me sentia meio bêbado e talvez isso fosse apenas a personificação da minha consciência pesada. Um tanto literal demais, é verdade.
– Você é que está de sacanagem, fazendo um monte de perguntas em vez de ajudar, seu obtuso. Ande logo, me tire daqui.
– Papai Noel?! Como eu posso saber que isso é verdade?
– Tem um velho gordo engastaiado na sua chaminé em 25 de dezembro. Quem você acha que eu sou, seu animal?
– Tudo bem, você não precisa provar nada não. Papai Noel não deve ser tão babaca assim...
– Opa, opa! Peraí! Vamos conversar...
– Ah, agora você quer conversar?
– Chega aí, meu amigo. O que você quer saber?
– Me fala, por exemplo o que eu ganhei de Natal quando eu tinha dez anos? – perguntei parado em frente à lareira com os braços cruzados.
– Um quebra-cabeça. Um quebra-cabeça do Super Homem! Era um desenho maneiro pra caraca, com uma...
– Seu idiota, eu pedi um Ferrorama da Dini Presentes! E você me deu um quebra-cabeça? O que você tem contra mim, afinal?
– Procura entender, cara. Tava uma inflação danada, toda aquela história de Plano Verão... as coisas foram bem difíceis, naquela época, sabia?
– Difíceis? E sua fábrica de brinquedos no Polo Norte? Deve haver milhares de ferroramas por lá, apitando naquelas maquetes cheias de casinhas, túneis, bonequinhos...
– Menino, eu também pago impostos. E aqueles duendes comem pra caramba, você tem noção disso? Mas façamos o seguinte: você me ajuda a sair daqui e eu te dou seu Ferrorama, ahn? Que tal?
– Mais de trinta anos depois? Espera aí. Vou te ajudar sim, seu estúpido. – respondi-lhe, buscando uma vassoura no cômodo adjacente. Esgueirei-me para dentro da lareira e suspendi o cabo o máximo que pude, forçando vigorosas cutucadas na bunda gorda do bom velhinho.
– Ô, seu filho da mãe! O que é isso? Ficou maluco? Para! Você está me machucando!
– Maluco é você em pedir ajuda a alguém que deixou na mão. A quantos você fez a mesma coisa, hein, velho safado? Saia daí! Você não é bem vindo em minha chaminé.
– Para com isso, para! – gritava ele e, subitamente, livrou-se de sua inusitada prisão. O medo e o desespero é motor para atitudes inacreditáveis.
– Nada como a própria bunda em perigo para nos impelir a sair do lugar, não é, seu babaca?
– Obrigado por nada, moleque atrevido! Está vendo porque não ganhou o Ferrorama? No fundo, no fundo, você sabe que só merece um quebra-cabeças – e olhe lá. Agora se arromba aí, porque eu já concluí meu serviço. A gente se vê ano que vem, caso você se comporte bem! Ho, Ho, Ho! – gritou o velho na abertura da chaminé, fazendo-me uma banana com os braços, e sumiu da minha visão. Antes de ir embora, porém, fez questão de me agredir mais uma vez. – Antes que eu me esqueça, fala pra tua mãe que a rabanada estava gordurosa, tá? Te mando a conta do antiácido… – concluiu, a voz sarcástica sumindo na madrugada.
Rabanada gordurosa? Comportar-me bem? Que velho sacana. Sentei-me ofegante ao sofá, observando a sala entre sorrisos estupefatos e indignados. Corri o olhar pela lareira, as garrafas e taças vazias sobre a mesa de centro, a árvore de Natal iluminada pelos pisca-piscas, os papéis de presente rasgados e abandonados sob ela. Abraçado à vassoura, senti a vista pesar, lentamente, e quando abri novamente os olhos, o dia já havia clareado.
Vi-me, de repente, largado sozinho em pleno silêncio. Acordei atordoado, por alguns segundos, sem saber exatamente onde estava. Ah, sim... Sorri novamente. Um sorriso bobo e inocente que se desfazia rápido. Franzi os lábios. A verdade é que ainda estava meio puto.
Ora, Papai Noel preso na chaminé? Ah, bem que eu gostaria de ter tido essa oportunidade! Aquele Ferrorama está engasgado em minha garganta até hoje. Contudo, ao fim e ao cabo, eu não devo ser o único que deixou de ganhar o que queria – tendo que continuar a ser bonzinho, mesmo assim. Humpf. C'est la Vie…
Opa, mas espere aí. E se houver acontecido mesmo? Talvez eu esteja meio louco, um tanto bêbado, ou tenha atravessado uma janela mágica além do tempo e do espaço. Levantei-me e fui conferir a passagem da fumaça na lareira apagada. Tudo havia sido uma quimera, a materialização de um trauma infantil, uma catarse, um ledo engano! Mas… quem é que está ligando para enganos e desenganos em pleno Natal?
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