A culpa é nossa
“Sonhar é acordar-se para dentro.” (Mario Quintana)
Acordei em plena madrugada, sobressaltado e ofegante. Havia uma voz ao longe, que eu não podia distinguir, nas indóceis brumas do sono. Deitado de lado, o lençol cobria as orelhas, as mãos uniam-se sob o rosto. Aquela voz, rouca, indistinta e suplicante, tornava-se mais e mais próxima, e por fim, levei uma sacudidela no ombro. Assustei-me e despertei de vez.
– Mô… você está ouvindo? – sussurrou minha Dona Maria.
– Ahn? O quê? O que está acontecendo? – balbuciei morosamente, os olhos ainda pregados de sono.
– Esse barulho. Você está ouvindo? Lá fora. Vai lá para ver o que é… – continuou ela, num tom preocupado. Suspirei, com fastio.
– Tá, tá bom. Eu vou… – respondi preguiçosamente, afastando o lençol e sentando-me à beira da cama, esfregando os olhos. Após alguns breves bocejos, levantei-me, letárgico e dubitativo.
Calçando com dificuldade as sandálias, desci as escadas num caminhar pesado, apoiando-me no corrimão de madeira e murmurando qualquer coisa que nem chego a lembrar. A penumbra e o sono deixava tudo muito confuso, mas eu precisava fazer aquilo ou Dona Maria não voltaria a dormir, preocupada. C'est la vie.
Aproximei-me da porta da cozinha e parei, concentrando minha atenção em algum som, qualquer que fosse, vindo do quintal, mas não havia nada, terráqueo. Perfeito, perfeitíssimo silêncio. Dona Maria deve ter tido um sonho muito do realista e me acordou por isso – mas ela não se daria por satisfeita se eu não fosse lá fora, ainda que no meio da madrugada. Expirei fortemente o ar pelas narinas. Já estava de pé mesmo, o que me custava?
Suspeitoso leitor. Destranquei a porta com cuidado e saí, na ponta dos pés. Nada de diferente, o mesmo silêncio de outrora, nem mesmo o som dos grilos ou pássaros noturnos. Silêncio absoluto. Nem sei o que é pior: encontrar alguma coisa ou não haver absolutamente nada a encontrar. Embora aliviado, achei estranho. Corri o olhar pelo quintal, parado sob o abrigo da varanda, quando ouvi a porta repentinamente bater atrás de mim e me assustei, girando nos calcanhares, num movimento automático. Fiz menção de retornar para casa, mas estaquei a meio caminho, sentindo um arrepio percorrer a espinha.
– Ei. Ei, você! – alguém chamou, com a dicção levemente embargada e voltei-me novamente na direção do quintal.
– Quem… quem está aí? – tartamudeei assustado, apertando os olhos a fim de identificar a presença de alguém.
– Sou eu… – respondeu, no momento em que consegui reconhecer na penumbra um sujeito baixinho e bem humorado. E o sujeito era eu. Eu!
– Você? O que você está fazendo aqui? Porra, são três horas da manhã! – murmurei, preocupado em não fazer muito barulho. Mas ele, eu, não estava muito preocupado com a paz dos outros, não.
– A culpa é sua, ô rapá! – acusou num timbre levemente rouco, porém sonoro.
– Culpa minha? Culpa pelo quê? – perguntei indignado. Ora, vir aqui no meu quintal e apontar o dedo na minha cara? Que insolente!
– Por isso tudo aí! Pelo seu colesterol alto, pela inflação, pelas ruas esburacadas, pelo maniqueísmo político, pela crise no mercado financeiro, pelos pedintes na rua, pelo desemprego em massa, até pelos ciclones extratropicais… – insistiu, contendo-se ao perceber que lhe faltariam dedos nas mãos para me acusar.
– Minha é o cacete. – rebati, num tom malcriado, mas ele, uma visão borrada da minha consciência, nem se incomodou.
– A culpa é nossa, então. – concluiu, resignado e assertivo. Ora essa. Quem eu pensava que era pra falar comigo assim?
– Inclua-me fora disso. Eu não quero nem saber de quem é a culpa ou a responsabilidade do que quer que seja. São três horas da manhã. Eu quero dormir, minha esposa quer dormir, meus filhos querem dormir. Faz o seguinte, vai embora do meu quintal e fica tudo por isso mesmo…
– Seu quintal? Você não é dono de coisa alguma, seu cabeçudo. Isso tudo aqui é meu. Meu! E outra: ninguém, ninguém me tira daqui. Eu não saio daqui nunca mais!
– Quer saber? Fica aí falando sozinho. Eu não quero mais falar com você... – disse dando-lhe as costas e abanando a mão por cima do ombro. Caminhei até a porta e, girei a maçaneta, mas ela parecia trancada. Insisti com cada vez mais vigor, mas a porta não abria de jeito nenhum!
– Isso! Isso aí! Foge, seu covarde! Pediu arrego, né? Foge, seu bebezão! Be-be-zão! – debochava aquele sujeito, a voz se tornando mais e mais distante, irônica, e por fim, levei uma sacudidela no ombro. Assustei-me e despertei de vez.
– Mô… você está ouvindo? Acorda! – disse minha esposa, num tom preocupado, e continuou. – Está tudo bem? Está se sentindo bem?
– Ahn? O quê? O que está acontecendo? – balbuciei, sonolento, apoiando-me na cama, sobressaltado e ofegante, o coração batendo aceleradamente.
– Você está sonhando! Calma, calma. Está melhor? Quer alguma coisa? – perguntou, carinhosamente, no lusco-fusco do quarto.
– Ahn… sim. Não, não preciso de nada, não. Obrigado... – respondi, um pouco desorientado, controlando a respiração e me ajeitando novamente na cama. Ainda era madrugada. Culpa minha (ou nossa), eu precisava dormir. E torcer para a pérfida consciência não me acusar novamente num sonho incomum.
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