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Uma grande fatalidade

Por George dos Santos Pacheco
19/06/24 - 08:16

“Quem nunca desejou morrer com o ser amado, não conhece o amor, não sabe o que é amar.” (Nelson Rodrigues)

Desceu do carro e, ato contínuo, bateu a porta com ligeira indiferença. Abotoou o paletó do terno cinza enquanto caminhava, resoluto em direção ao pequeno sobrado. Algumas viaturas piscavam os giroscópios, paradas de maneira um tanto displicente no quarteirão, o sol refletia nos para-brisas, ofuscando a vista e impedindo uma impressão consentânea sobre o panorama.

Uma multidão de curiosos atulhava a rua. Passou entre as pessoas, o caminhar firme e implacável, aproximando-se da fita zebrada com ares de autoridade. Exibiu em seguida o distintivo para um dos policiais militares que guardavam a residência e estes fizeram-lhe continência; ele retribuiu com um discreto aceno de cabeça e seguiu, erguendo, ligeiramente, a faixa com os dedos.

Abaixou-se e, cruzando-a, seguiu pelo caminho de pedras do jardim até os átrios da casa, cuja porta ostensivamente aberta convidava aos detalhes daquele mistério.

O ar parecia particularmente abafado, naquela manhã. A sala, bem decorada numa arrumação minimalista com móveis de madeira, ostentava um tapete colorido bem ao centro, pouquíssimos quadros exibiam-se nas paredes. No sofá, uma mulher jovem era amparada por uma policial, o rosto banhado em lágrimas, o olhar perdido, sorumbático. Ele ignorou-as, solenemente, cruzando o pequeno hall em direção à charmosa escada em pinho de riga.

Os degraus rangiam à medida em que cruzava com outros agentes pelo caminho, homens da perícia que realizavam o trabalho de praxe para o estudo do caso. O corredor do segundo andar, mal iluminado, era algo insolente que reprovava num muxoxo indignado. Alcançou finalmente o quarto e entrou.

Atravessando a soleira, encontrou a cama revirada, os lençóis farfalhados, os travesseiros fora do lugar. Passou os olhos por aquela terrível cena e dirigiu-se ao policial de pé a um canto do cômodo, que anotava qualquer coisa numa prancheta vulgar, só então fazendo notar sua presença.

– Bom dia, chefe… – cumprimentou o homem, de um modo que o fazia parecer mais próximo do agente que os demais.

– Então, o que temos aqui? – indagou ele, num suspiro resignado, retirando o palito de dentes do canto da boca e apoiando a outra mão na cintura.

– E.S.E., homem de vinte e cinco anos, um metro e setenta e cinco, forte, cabelos castanhos lisos, esmagado por um guarda roupa de seis portas, dois metros e trinta. Tudo indica que foi pegar algo na parte superior do móvel quando este tombou sobre ele. Hora aproximada do óbito: entre três e quatro horas da manhã. – respondeu o policial, batendo a caneta BIC na prancheta antes de apontar para o móvel caído ao chão.

– Misericórdia! Que tragédia! – exclamou o investigador, franzindo os lábios e balançando a cabeça negativamente. – E a esposa? – continuou, com ar lúgubre, voltando-se para o subordinado, tornando a colocar o palito no canto da boca. Uma viatura distanciava-se lentamente, a irritante sirene desaparecendo no éter.

– Está em choque, não sabe o que dizer. – respondeu o outro, movendo o olhar para o superior.

– Pobre do marido… – comentou o chefe, tristemente, com os lábios presos e uma espécie de silêncio hesitante se fez entre eles, quebrado finalmente por uma tossidela que ecoava em algum ponto da casa. No chão, o homem ainda jazia, estatelado, sob o pesado móvel, aguardando a chegada de outra equipe para removê-lo.

– Pobre mesmo. Nem sabe ainda o que aconteceu. – concordou o policial, finalmente, após um suspiro, num tom que arranchava a superfície da jocosidade. O outro agente sentiu estremecer, julgando o comentário um tanto desrespeitoso. Franziu as grossas sobrancelhas grisalhas, unindo-as como se uma só fossem.

– Ah, meu amigo. A essas alturas, São Pedro em pessoa já o avisou. – comentou, em contrapartida, com ar grave e pesaroso.

– O quê? Ah, não, não, não. – interveio de imediato o policial. – O marido está fora da cidade, a negócios… não sabe de nada ainda. – insistiu ele, para surpresa do chefe, que o encarou, retirando novamente o palito da boca.

– Ora… – limitou-se a dizer o superior, desconcertado.

– Talvez desconfiasse, é verdade. – continuou, com ligeiro sarcasmo. – Os vizinhos não. Segundo consta, sabem de tudo faz tempo, muito tempo. Era assim toda vez que o homem viajava. – explanou, o semblante transmutando-se num sorriso vago e debochado. O tal silêncio constrangedor e hesitante novamente se fez presente entre eles enquanto o superior movia o olhar do guarda-roupa para o policial e deste para aquele, pensativo e estupefato. Maiores considerações seriam supérfluas.

– Uma grande fatalidade, não acha? – murmurou por fim, batendo a mão no ombro do colega. Tomou a direção da saída e, ato contínuo, recolocou o palito na boca, com ligeira indiferença.

– O marido que o diga! – respondeu o jovem, com hilaridade. O ar, entretanto, permanecia particularmente abafado, naquela manhã.


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