Quando acabar, o maluco sou eu
“Toda vez que eu olho no espelho a minha cara, eis que sou normal e isso é coisa rara” (Raul Seixas)
Naquele dia, Evans entrou na repartição com um documento debaixo do braço. A manhã já chegava ao fim e conquanto fizesse sol, num céu de puríssimo azul, o frio fustigava sutilmente. Entregou-me a papelada acompanhada de um livro de protocolo, de capa azul; os olhos pequenos, na fisionomia reservada e grave, perscrutavam a assinatura após a data de recebimento. “Esse aí é você mesmo, não é?”, perguntou com ar bonômico, o tom de voz baixo e comedido. “Ora, se não sou… claro que sim”, respondi, franzindo o cenho, sem entender a anedota, assim como os outros colegas da sala.
“Vocês não estão sabendo, não? Um maluco fugiu de uma clínica aí… espera aí, vou ler a notícia aqui… mandaram no grupo...”, começou a explanar, num sorriso, mexendo na tela do celular – e a gente ainda sem entender nada. “A Clínica… informou por meio de sua assessoria de imprensa que no dia vinte e um de junho, um de seus internos evadiu-se de suas instalações. Segundo o Diretor do nosocômio, não há motivo para se preocupar, tendo em vista que o histórico clínico do paciente não indica que ele represente perigo. Contudo, de acordo com uma fonte que não quis se identificar, o paciente se autointitula ‘Jaime Bon’ e, apesar de não ser agressivo, é paranoico e tem mania por conspirações. O mesmo teria fugido fazendo-se passar por um médico da clínica, saindo pelo portão principal e a vista de todos. Ainda segundo a fonte, o paciente poderia facilmente ‘fingir ser’ qualquer um”, ajuntou com voz empostada, erguendo as sobrancelhas ao mover o olhar para mim.
– E quem disse que o cara é maluco mesmo? – perguntei, entregando-lhe o livro. Evans agradeceu e recolheu-o, com as mãos magras, contraindo o rosto num ricto de estupor.
– Ora… ele estava numa clínica, né? – replicou o segundo, tranquilamente, adiantando-se. Súbito, interrompeu a carimbagem de um processo, numa curiosidade pertinente.
– Mas não seria a primeira, nem a última vez, que alguém é levado a uma internação sem ser necessariamente um paciente psiquiátrico, não é? No século 19, bastava a família do camarada ter um impasse com a herança para denunciá-lo como louco. – afirmei, recostando-me na cadeira. “Nem todos que estão, são, e nem todos que são, estão”.
– Não se pode é chegar em casa e ter um doido em seu lugar! – afirmou o outro colega, numa gargalhada, ao se levantar com sua caneca verde para buscar café, os demais o acompanharam em sua hilaridade. Também eu sorri.
Evans guardou a caneta com a qual eu assinara o livro, agradeceu outra vez, e continuou a troça enquanto tomava a saída. “Jaime Bon está por aí, hein? Cuidado! Valeu, Pacheco! Você é o ‘máximo’!”, concluiu ele, num ar zombeteiro, cruzando a soleira da porta; o pessoal riu uma vez mais, eu fiquei sem entender também esta anedota, e minhas considerações morreram sem deixar prole. Quando acabar, o maluco sou eu.
Assez causé, lucidíssimo leitor. Não nos precipitemos: assim como a baixa em uma instituição psiquiátrica não constitui parâmetro para caracterizar uma psicopatologia, fingir ser outra pessoa, também não. Até porque a maioria de nós, vez ou outra, se faz passar por alguém que não é: pais zelosos, filhos dedicados, companheiros fiéis, religiosos convictos, profissionais competentes, funcionários compromissados, patrões compreensivos, políticos honrados, eleitores conscientes... e ninguém é considerado maluco por isso. Ou é?
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