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Paranoia

⁣⁢

Por George dos Santos Pacheco
23/06/21 - 08:00

“Nas grandes cidades do pequeno dia-a-dia, o medo nos leva a tudo, sobretudo à fantasia, então erguemos muros que nos dão a garantia de que morreremos cheios de uma vida tão vazia.” - Engenheiros do Hawaii

Ele parecia nervoso. Esquentou o almoço no fogão a gás, com discretos e eventuais muxoxos, seguindo meticulosamente mais um de seus rituais, com os talheres e utensílios obedecendo a uma ordem previamente calculada. Nada mal para um homem de meia idade que morava sozinho. Estalou os lábios, impaciente. Havia alguma coisa errada, ele sabia.

Convenceu-se dia após dia de que o mundo estava de cabeça para baixo. Os costumes, os valores, os comportamentos... a lógica perfidamente invertida, em nome do protagonismo das ambições, meias verdades, do egoísmo. Todos estavam enlouquecendo, mas ele... ele não iria tomar parte disso.

Melhor mesmo permanecer em casa. Era seguro, quentinho e previsível – e digam o que quiserem, não há segurança maior que a previsibilidade. Depositou o alimento no prato utilizando colheres de madeira, com extremo cuidado. As panelas de alumínio liberavam metal que se acumulava de maneira nociva no corpo, de forma lenta, assim como as más ideias, manias e cacoetes. Precisava dar um jeito nisso, urgente. O micro-ondas também não lhe era bem vindo; a radiação emitida prejudicava o sono, causava câncer, demência e sabe-se lá mais o que, assim como os smartphones, TV's de LED e todas essas pseudo facilidades da modernidade.

Ligou um aparelho de rádio antigo, sintonizado na estação da cidade, enquanto saboreava os legumes gratinados. Como não possuía o hábito de sair (quanto mais agora, com esse vírus nojento), essa era a única maneira de se manter informado.

“Acidente na RJ-116 deixa dois mortos e um ferido". Deus o livre andar de carro por aí. Esses acidentes acontecem todos os dias, por mais cuidado que se tenha. “Nova empresa de ônibus começa a operar na cidade a partir de julho". Há anos não usava o transporte coletivo. Quando foi que isso começou mesmo? Mal se lembrava. Talvez tivesse algo a ver com a vizinha, aquela mocinha simpática por quem se apaixonara. Mas ela se casou, tivera filhos, se divorciou (o marido a traía, ele soube desde o início).

Engoliu um bolo de comida desagradavelmente, os olhos lacrimejaram. Suspirou, remexendo o alimento com a ponta do garfo de um lado para o outro. Também ele devia ter casado, tido filhos, um emprego de verdade. Perguntava-se, todavia: teria sido diferente, menos doloroso? Afinal, as pessoas traem, os filhos esquecem os pais, os patrões demitem, não é mesmo? Ali no seu infinito particular estava imune a tudo isso, a tudo e a todos.

Blah! Não importa. Não mais.

Ajeitou a porção no talher com o auxílio da faca, mas quase o derruba ao vibrar os braços pelo susto. Um estrondo de estilhaços de vidro se espalhando ao chão o surpreendera, antes mesmo de levar a comida à boca.

“Puta que o pariu, que merda é essa?”, esbravejou e arrependeu-se de imediato. Jamais xingava. Os palavrões tem uma carga negativa muito grande e tudo o que pensamos, agimos ou falamos reverbera uma mensagem para o universo e esta retorna para nós. Tapou a boca com ambas as mãos, em arrependimento, mas agora já era. O que estava feito, estava feito. O não feito também.

Abandonou bruscamente o prato sobre a mesa. O que fora isso? Um ladrão? Mas... não havia nada de valor ali! Empurrou a cadeira para trás e levantou-se. Caminhando vacilante na direção do barulho, foi surpreendido por pancadas secas na porta, insistentes e irritantes pancadas, tão inconvenientes quanto o estrepitoso e incipiente ruído.

Inspirou forte e cadenciadamente. Leu certa vez que podemos controlar os batimentos cardíacos e o humor apenas dominando a respiração. E isso não era mágica ou feitiçaria: era ciência.

Virou a maçaneta e se arrependeu pela segunda vez. Devia ter perguntado quem era antes de abrir.

O molecote irrompeu a sala, completamente suado, o pés sujos de lama e falando pelos cotovelos. Putzgrila (putzgrila era palavrão?)... havia passado a manhã inteira limpando a casa. Mesmo fechada, a poeira repleta de germes e bactérias sempre encontrava um jeito de penetrar e se acumular sobre os móveis, emoções e pensamentos.

– Ei tio, ei tio! Posso entrar, posso entrar? – avançou o garoto feito uma lufada de vento, arrastando os pés enlameados no assoalho de madeira. Sentiu vontade de xingar de novo, mas cerrou os dentes.

– Ora, seu... – murmurou enquanto assistia o garoto atrevido macular sua paz.

– Minha bola caiu aqui e... noooooossa! Que casa legal! Tão limpinha... – comentou espalhando perdigotos pelos ares. O homem tapou o rosto com a dobra do cotovelo, como se o escondesse por trás de uma capa invisível.

– Ande, menino! Pegue logo sua bola e suma daqui!

– O senhor não parece vampiro... – comentou ele com ar curioso ao encará-lo.

– Mas é claro que não sou vampiro.

– Meus colegas dizem que sim. Err... outros dizem que o senhor é um assassino também – e que guarda um corpo no armário – emendou inclinando a cabeça e semicerrando os olhos, como se lhe fizesse uma confidência. – O senhor não tem um defunto no armário, não é?

– Então, é isso o que dizem de mim... – refletiu em voz alta, numa afirmação, embora soasse como uma pergunta.

– Ah, veja, ela está aqui! – exclamou o menino ao pegar a bola, continuando ao se erguer. – Isso e muito mais. Mas não penso assim. Acho que o senhor é apenas... um homem triste.

– Ora, ora... eu não sou triste! – retrucou o homem, descobrindo, incauto, a face oculta.

– Ah, eu acho que seria um pouco triste se ficasse em casa o tempo todo, se não pudesse jogar bola com meus amigos, se não sorrisse. Sabe... minha mãe diz que algumas pessoas são tristes, só não sabem disso. – refletiu o garoto, saindo ainda mais rápido do que quando entrara. – Valeu pela bola, tio!

O homem parou melancólico ao umbral, seus olhos marejaram enquanto via aquele menino atrevido afastar-se. Arrependeu- pela terceira e última vez. Franziu o cenho e os lábios e, girando nos calcanhares, bateu a porta com força atrás de si. Não poderia negar que havia sido astucioso, mas... fora um sórdido embuste, uma artimanha malograda daquela gente pífia em bisbilhotar sua vida. “Que absurdo!”, pensou, observando a vidraça quebrada e suspirou num muxoxo. Precisava dar um jeito nisso, urgente. Observava a refeição, interrompida ao meio do caminho. Perdera completamente a fome. Era tudo muito abjeto, uma grande loucura! Ele, porém, recusava-se a fazer parte disso.


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