Contra o óbvio não há argumento

“Só os profetas enxergam o óbvio.” (Nelson Rodrigues)

Imagine que Dona Maria me envie ao mercado com uma lista de compras. Maionese, biscoito salgado, pacote de açúcar, óleo de soja. Na saída do trabalho, lá vou eu ao mercantil, com o rascunho anotado à caneta, ziguezagueando muitíssimo compenetrado entre as gôndolas e recolhendo os produtos. Ao chegar em casa, porém, a mordaz constatação: “Você não trouxe o que te pedi.”. Ora, e como não trouxe? Está tudo aí. Err… não exatamente.

Acontece, caro terráqueo, que a maionese era da marca referência, o biscoito salgado eram dois pacotes, o pacote de açúcar de apenas um quilo (e não cinco), o óleo de soja era aquele da promoção do dia. Mas nada, nada disso estava escrito na polêmica lista. Ela estava certa, há que se admitir, mas o simples fato de não ter especificado as características dos produtos, me absolvia – não sem um suspiro enfastiado.

Eis o que eu pretendia dizer: a ignorância é um álibi muito do sem-vergonha. Nas tarefas domésticas, em nossos lares, no trabalho, na política, enfim, o que mais se dá conta é tupiniquim alegando ignorância e fazendo isso parecer digno de loas. Ora, cacetas. Não está escrito, declamado, avisado, mas é óbvio. E contra o óbvio não há argumento.

Num desses dias, de trânsito concorrido, eis que um astuto condutor à minha frente encostou o carro a uma das agulhas da Marcílio Dias para desembarcar um passageiro (em plena rotatória). Vá lá, não há placa nem nada (proibido parar ou estacionar), mas isso precisa realmente estar escrito? Entre parênteses, a rotatória da Praça Marcílio Dias é o local por excelência para estabelecer o caos na Suíça Brasileira. Se uma família de capivaras resolve atravessar para a praça, o engarrafamento é garantido para Olaria e Conselheiro, inclusive. Quiçá para a Bahia.

Brequei o carro no susto, desviando repentinamente, comprometendo a faixa interna da rotatória, cerrando os dentes, um bocado aborrecido. Nelson sacramentou que “só os profetas enxergam o óbvio” numa crônica para O Globo em 1977, mas o tupiniquim leva isso aos extremos e se aproveita da situação – e é exatamente aí que mora o mal. Para levar qualquer tipo de vantagem, a primeira coisa que o cara pálida argumenta (desde os cueiros) é que não sabia.

Por essas e outras, cara pálida, eu sou capaz de afirmar, sem medo de errar e com o dedo em riste, que se Adão fosse brasileiro, das duas, uma: ou estaríamos no Éden até hoje, ou então o cajado teria batido com mais força no seu lombo. “Data Vênia, Senhor, mas onde está escrito que daquela árvore não podemos comer o fruto?”. Com tantas guerras, epidemias e inflações (estão dizendo que o preço da gasolina vai aumentar outra vez), eu fico com a segunda opção.

Enquanto isso, seguimos, descaradamente, estacionando em fila dupla, parando nas rotatórias, atravessando inadvertidamente as ruas e comprando itens errados para a mulher, pela mais pura e cínica conveniência. Não se assuste, honestíssimo leitor, se um dia houver placa em tudo que é lugar, para alertar o que não precisa de aviso. “Dê descarga”, “Não pise na grama”, “Não jogue lixo no chão”, “Se beber, não dirija”… Ih, olha só. Já está acontecendo – e não adianta dizer que não sabia.